
TW: Este texto contém assuntos sensíveis
Introdução
Tomoyo, tão jovem, tão sensível. Imensidão azul, melancolia una. As lágrimas destrinchando-se pelo corpo; a fumaça desintegrando-se aos céus.
Tomoyo, tão jovem, tão desolada. Jaqueta de couro desgastado, sapatos fúngicos. As memórias; os fragmentos conservados, colados ao peito.
O azul que se transborda através do amor. Nunca, nunca faltou amor.
Em mais um dia almoçando numa pensão à beira da rua, Tomoyo Shiino encontra, em meio às várias tragédias anunciadas pelo jornal da tarde, a notícia de que Mariko Ikagawa, sua amiga de infância, havia atentado contra a própria vida. Usa um blêiser preto e cabelos amarrados. Encara a televisão com um olhar irresoluto, hesitante. Não enxerga a sua amiga naquela descrição, desde o uso excessivo de medicamentos até a última performance para além daquela varanda. A veracidade é questionável; não, Mariko não agiria dessa forma. Ela não faria isso.
My Broken Mariko, de Waka Hirako, escuta as lamentações de quem restou no mundo. A personagem estampada na capa nos atira nas melancolias de Shiino, que busca encontrar os fragmentos deixados por Mariko em cada espaço que frequentou. A edição da JBC, grande distribuidora de mangás (histórias em quadrinhos japonesas) no Brasil, ainda acompanha “Yiska”, um curto conto de velho-oeste, agora sobre o afeto entre dois homens. A autora, que começou sua carreira de mangaká (quadrinista japonesa) em 2018, vêm produzindo tramas extremamente profundas sobre as relações humanas, que serão o objeto de análise deste texto. Fraseando o parágrafo presente na contra-capa do mangá, trabalharei com “Uma história vívida sobre a relação de alma de duas mulheres”.
A adolescência e o mundo do trabalho
Reconheço a adolescência como a fase mais bonita da vida; sinto melancolia em pensar nisto. É verdade: quero ser adolescente para sempre. Sempre me foi claro que era a idade limite para construir amizades e outros tipos de relações profundas – claro, sem interesse romântico, sexual ou financeiro. Parece impensável para um adulto se relacionar com outra pessoa sem que haja um mínimo de interesse por trás. Os compromissos com o trabalho, com a aquisição de propriedades de consumo e com a construção de uma família tradicional corroboram para que este tipo de relação não seja uma prioridade. Tomoyo recebe a notícia no horário do almoço, enquanto comia rapidamente para voltar ao trabalho. Páginas depois, o chefe aparece cobrando-lhe por não ter vendido todos os produtos do dia. O tempo todo, a lógica capitalista nos impõe que a mercadoria deve ser mais importante que o contato entre as pessoas, obrigando-nos a dedicar nossa própria vida ao exercício do trabalho.
Observação: a leitura dos mangás é feita em sentido oriental: da direita para a esquerda; de cima para baixo. A ordem estará indicada pelos números nos balões de fala.

O desprezo é genuíno a um pensamento óbvio neste modo de produção. Perde-se algo tão fundamental na nossa formação enquanto sociedade: o prazer de ver a outra pessoa feliz, de se sentir pertencente a um grupo e de retribuir este amor. O cotidiano é monótono; o verdadeiro prazer, para a lógica capitalista, está no que há de se acumular e gerar riquezas futuras. Gostaria de, quando adulto, dedicar uma parte da minha vida ao cuidado com o outro – parte tão essencial da relação entre as duas. Mariko não seria a mesma sem o cuidado de Tomoyo: para uma pessoa que viveu toda a sua vida confinada a uma família extremamente disfuncional, ter uma pessoa que a tratasse com o amor que merecia era essencial. Existe, porém, um profundo desequilíbrio entre o tratamento que uma dá à outra. Em algum momento, sobra amor para Mariko e Tomoyo interpreta que amar é se doar o tempo todo. As duas não desenvolvem confiança o suficiente para se tornarem adultas responsáveis consigo mesmas. Isto resulta na odisseia que vemos ao longo do mangá, com Tomoyo visitando lugares particulares à Mariko. Ao mesmo tempo apática, confusa com o que teria precedido este evento – apelando à memórias passadas para elucidar o que havia ocorrido – e buscando os cacos de Mariko para que, de alguma forma, pudesse se sentir mais completa.
Reconstruindo o luto através do amor
A vida cotidiana costuma ser bastante incerta. Brinco que, dia após dia, não sei se voltarei sorrindo para casa ou sofrerei algum tipo de tragédia – e que isso não pode ser um obstáculo para montar planos. Apesar disto, ainda sinto medo do que há por vir. Minha prepotência de pensar que algo estava em meu controle em algum momento. Que deveria seguir minhas ordens, obedecer quando não quisesse ser atravessado por palavras felizes e cruéis. Queria, às vezes, que as pessoas entendessem. Que o mundo paralizasse, que momentos fossem eternos. Fluidos, rápidos, esquecíveis. Manipulasse a manivela do chuveiro, ritmasse a gravidade da água, que logo escorreria pelas minhas mãos e desceria pelo ralo.

Apesar de o título estar em primeira pessoa, a imagem da capa não ser de Mariko e acompanharmos esta história à partir do seu ponto de vista, Tomoyo Shiino não se reconhece capaz de existir por si só. Olha para os cantos, pega o isqueiro, acende o cigarro, lembra dos momentos em que foram felizes. Vai às ruas, vende os produtos, volta para casa. E esse vazio no peito, nunca passa? Esta viagem, apesar de ser motivada por Mariko, não pode acabar enquanto permanecer o sentimento de que alguma resposta está faltando. Waka Hirako encara o luto não como pausa no viver, mas como uma possibilidade de criar vida à partir da memória das pessoas que carregamos em nosso peito. Uma correnteza que se conduz conosco durante a vida, mas que domando o padrão das águas, olhando atentamente para as rochas musgosas que hão de aparecer e evitando galhos que podem nos ferir, pode tornar essa jornada muito mais satisfatória. Percebe que enquanto buscar sentido para algo tão enigmático como um suicídio ou viver sob os valores de outra pessoa jamais poderá se sentir satisfeita. Portanto, não é uma história de início-meio-fim.
A força que tinha para enfrentrar as adversidades da vida. As expectativas de mudança, de construir um mundo diferente de todas as violências que passou. Em qualquer lugar, nos pequenos sorrisos, a sua simplicidade sempre se fará presente. A jornada de Tomoyo Shiino, enfim, é só sobre ela, assim como foi a de Mariko. À quem ficou no mundo, resta transmitir os aprendizados de uma garota que não conseguia ter forças para percebê-los. Desta forma, pode aproveitar a gentileza de uma pessoa que tanto a amou e usar para cuidar de si mesma e de outras que cruzaram seu caminho. A gentileza de Mariko que, de tão intensa, transborda do peito ao longo da vida.

Extra: O que a Literatura inspira?
Como estamos no universo das Histórias em Quadrinhos, tratarei-as como Literatura neste texto. Talvez soe como uma blasfêmia para muitos, mas minha intenção não é entrar nas nuances do que pode ou não ser considerado Literatura e sim pensar atributos comuns à leitura destas mídias físicas. A maior virtude da Literatura é ser capaz de ditar as ordens do seu próprio mundo.
Esta obra é de volume único, o que é incomum para a maior parte dos mangás, que lançam dezenas de volumes em sequência. Se for da sua necessidade, poderá lê-la em algumas horas, desde o Restaurante ao Pontal, e retomar outras atividades. Entretanto, se depois de se permitir ler esta obra algo aqui te tocou, permita-se reler aquele capítulo, aquela cena, aquela página ao menos uma vez. Faz-se necessário, muitas das vezes, olhar para a frente, tocar um copo de água e se hidratar, dar um abraço num ente querido, petiscar um biscoito, fazer carinho no seu gato e, enfim, preparar-se para ler novamente. E sentir que não está preparado, que não é o momento ainda. E tentar mais uma vez.
A cada vez que olho para a minha janela – que muitas vezes desprezei, teimando apresentar a mesma exposição todo dia -, sinto que as cores do mundo se transformaram. Um cavalete no qual eu esgueiro meus braços para tocar a tela arco-irís; uma grande paleta de cores que se mistura a cada dia. A Literatura é a expressão artística que mais nos desafia a proporcionar conflitos com nós mesmos. Faz-se íntima por ser diferente, por desafiar-nos a procurar soluções em locais que nunca percebemos. A Literatura acalenta a ansiedade, pois se preocupa somente com a situação presente. Nada mais importa a não ser entender como a Tomoyo vai conseguir se sentir bem consigo mesma ao final. E isto não significa que, de fato, o prefeito da sua cidade asfaltou a sua rua ou corrigiu o desnivelamento da calçada – o mundo tem suas complexidades -, mas talvez a Literatura te ajude a entender o que te aflige na sua própria realidade e, quem sabe, transformá-la de alguma forma. Histórias se preocupam com detalhes e aqui existem muitos deles.
De fato, os elementos permanecem em seus lugares. O mundo pouco mudou, mas o encanto, a vontade de falar por horas, a tristeza dilacerante, a sensação de satisfação após ter uma experiência são o que fazem da Literatura algo que deve ser preservado.
Apresentei este livro em uma particular aula de Português, onde a professora nos convidou a trazer obras literárias que nos marcaram de alguma forma. Alunos em suas posições de narradores, de críticos, de ensaístas. Outros que já haviam lido dando suas carteiradas sobre os temas discutidos. E íamos flutuando, por um instante, nos mundos que essas pessoas nos apresentavam. Cada “eu escolhi este livro, pois…” carregava dialetos, vivências, paixões que – penso eu – era impossível não provocar as pessoas a se aproximarem da Literatura. Apáticos, definitivamente, não saíram. Muitos não conheciam o formato de um mangá, até por ser uma literatura oriental, então é sempre curioso ver as pessoas se espantarem por ser “ao contrário” e não costumar ter muitas cores. Mas se dedicavam naquele momento, assim como na leitura de um livro, a escutar o que uma pessoa com uma cultura completamente diferente teria a dizer.
Se, neste dia, instiguei alguém a ler ou por meio deste texto alcancei futuros leitores é porque me permiti, no momento em que li My Broken Mariko, ser atravessado pela Arte literária. Obrigada, muitíssimo obrigada por ler.