
Ainda Estou Aqui (2024) é um filme de constante alerta. As cenas de conforto subitamente são substituídas por um olho que, covardemente, tudo vê e intervém. A tragédia nem é iminente: já se mostra presente em todos os espaços. A Ditadura se apresenta no céu (helicóptero), no mar (viaturas desfilando pela praia) e na terra (as prisões, o controle de quem entra e sai). O objetivo é se fazer paisagem, é colorir o espectro de verde a fim de que nada contraste com ele. A praia desvanece ao longo do filme, não resta motivo para ir lá. O tom muda quando aquela casa, lugar de descanso, de trabalho, de festas começa a ser vigiada, vasculhada. Rubens se foi, mas tudo que o lembrava precisa ser excluído, esquecido.
Pensar uma “família tradicional”, que produz com felicidade para atender às demandas do Capital, é impossível quando tudo o que nos torna plural é reprimido. Quando eles entram nas casas das pessoas, desordenam as suas famílias e permanecem impunes até as suas mortes. Mas esta violência, muitas das vezes, propaga-se no próprio ar que respiram. Quando não se fala sobre o que passa no jornal; quando no almoço não se fala em política. Quando nos fazem esquecer que temos voz. São dessas microviolências, deste medo de perder o que ainda resta, que Ainda Estou Aqui constrói um Espaço Geográfico sufocante. A Geografia chega antes dos próprios personagens: nos fazem empilhar sentimentos em cima de espaços que antes nos confortavam, por meio de paralelos que aparecem ao longo do filme.
Eunice (Fernanda Torres) está em um restaurante com a sua família. Mesmo com tempos passados, aquela figura ainda faz falta. Ainda reside naqueles corações, ainda sorri e machuca. Somos um corpo que solta pedaços pelo mundo e carrega cicatrizes. Enquanto todos estão se divertindo, e ela também está, aquele sentimento de “esse momento seria melhor com ele” aparece. E aquele vazio, aquilo que começou e nunca pôde anunciar seu fim, volta a doer. O que toca, porém, é a ação que se sucede: a viúva, de frente para a câmera, tentando encontrar seu marido nos rostos daquelas famílias. Encontrando no outro o que falta em mim, o que falta aqui. O luto, a saudade, a memória ainda permanece. Ainda está aqui.

Eunice (Fernanda Montenegro), em estado de Alzheimer, tem dificuldades em andar e se localizar nos espaços. Mas a sua família sempre a apoiou, esteve com ela nos momentos mais difíceis e agora não ia ser diferente. É hora de comemorar, de estarmos em festa. Logo, toda a cena é quebrada. Eunice, de frente para a câmera, vendo que o seu marido é considerado uma figura importante de luta contra a Ditadura Militar, em um dia de memória. Para Eunice, este dia era todo dia. Todo dia, nas árvores, nos ventos, nos cheiros, ela encontrava Rubens, mas nunca mais conseguiu alcançá-lo.

O paralelo entre a Eunice e o Rubens também se faz entre a Ditadura e a sua memória. Com envolvimento de figuras políticas relevantes, um plano de Golpe de Estado e assassinato das principais figuras políticas do Brasil custou pouco para ser realizado. Sempre lembremos e cuidemos das nossas feridas abertas, das nossas cicatrizes, assim como sempre estudemos os acontecimentos de um Brasil que, apesar de se movimentar, ainda reflete as nossas condições atuais. Decorre da História a Memória – do que é vivo, do que ainda arde e tem poder de transformação na nossa realidade.