Desconexão e Paralelismo

Certas vezes, ao acordar, eu olho para o alto e nada parece fazer sentido.  A luminária pisca sem parar; os móveis estão fora do lugar; as paredes começam a se movimentar incontrolavelmente.  O que é colorido começa a desbotar; o que é cinza começa a, em tons fluorescentes, expandir seu brilho às quatro paredes do cômodo.  Tento voltar a dormir; me beliscar, colocar minha cabeça para fora da janela: “será que é um sonho?”. Não sinto nada. Mentira. O que sobra é aquela sensação, lá no fundo, de correr contra o tempo.  De nadar para frente, para trás, diagonalmente, e não encontrar nada além de mais água no profundo, misterioso, atormentador e impossível oceano.  Em um aquário de peixes, sem conseguir mais se debruçar em cachorrinho, borboleta e peito, a solução, em última instância, parece se afogar.  Num misto de desespero e nojo, em meio ao ato final, degluto aquela medicação que eu próprio, talvez por amor, havia engolido. Ah, era isso.

Com meu quarto inundado, ao dia seguinte, eu olho para o alto e nada parece fazer sentido. Dia passado eu morri, e talvez morra também neste. Em um movimento ondulatório, o misto de algas, pedras, plástico e bastante areia aparenta estar indo embora.  Maduro, já penso no que vai acontecer depois: meu colchão continuará com as manchas sujas deste evento; as paredes, infiltradas, começarão a atrair mofo; as minhas queridas fotos, de um passado que sequer me reconheço, estarão distorcidas. E a água, que eu vou ter de limpar? E a lama, que terei de varrer? Nada voltará a ser como antes. É um cenário de guerra, ou melhor: pós-guerra. Já não aguento esperar quando, em um momento de extremo azar, aquela enxurrada de informações invada meu quarto novamente e traga tudo isso de volta. Nada do que eu fizer, neste momento, importará. É impossível impedir isso.

Após uma longa jornada de trabalho tentando recuperar o que nunca mais vai voltar, decidi comprar porta-retratos. O mofo já começa a ficar visível e, sendo sincero, comecei a não achar isso tão ruim. Claro que vou ficar resfriado constantemente, mas é o máximo que eu posso fazer neste momento. Minha maldição é continuar neste quarto, custe o que custar. Apregoando os então frágeis tecidos que mantém esse “resto” de pé, fixo imagens de pessoas variadas; de raças e gêneros variados, para me observar durante a minha estadia neste planeta. Afirmei, olhando firmemente nos olhos dos atendentes: “este aqui parece você”, “essa pessoa é tão bonita quanto você”, “os olhos desta parecem com os seus”. Todos concordaram, sem abaixar a cabeça, e ficaram curiosos pelos meus comentários. No fim do dia, depois de mascarar esse espaço, percebo que nenhuma delas, incrivelmente, se parece comigo.Sinto-me deslocado do universo; as figuras do “eu” solitário e os “outros” identificáveis, comuns, em um movimento de constante oposição, onde nada foge, que parece validar as nossas existências. Pelo menos, a partir deste momento, tenho um espaço que se difere tanto quanto eu. O único capaz de abraçar os âmagos mais carentes e melancólicos de um ser-humano.

Após, em uma transe de socialização, observar o que as pessoas escreviam em fóruns na Internet, decidi também escrever. Apesar de tudo, todo mundo parece ser muito verdadeiro com suas próprias convicções e desabafos. Talvez seja o cenário ideal para, como uma borboleta, tornar-me um cidadão. O meu bater-de-asas foi medianamente produtivo: algumas pessoas me acharam pouco objetivo; outras acharam minha história pouco intrigante. Sequer precisa ser? É a minha vida, não um conto de fadas! Uma pequena parcela disse que já se sentiu assim – e que eu deveria procurar ajuda para, de alguma forma, atentar-me às minhas dores intimamente.  Este ato proporcionou o melhor e pior sentimento da minha vida: eu me sinto menos sozinho. Não sou o detentor das dores mais únicas do mundo. Posso, agora, dizer que estou parelho àqueles lá de fora. Sinto-me medíocre. Onde está o espaço do “eu” nisso tudo? Eu sou o outro? Eu sou você? Então aquele eu que se opunha ao mundo era, na verdade, o próprio mundo?Meu corpo é uma casca vazia ocupada pelas dores e alegrias do universo? Decidi, em um movimento paradoxal, perguntar ao próprio blog sobre isso, assim como uma criança quando, ao folhear um grande objeto sugador da poeira ambiente, descobre que aqueles desenhos, juntos, formam palavras, frases, parágrafos, capítulos e que, em uma progressão conexa, temos uma história que pode proporcionar as mais diversas experiências.

No fim, tudo isso só é possível se me atentar ao livro ou, neste universo caótico, começar a abrir, vagarosamente, o meu coração. Um entusiasta da filosofia me respondeu que, talvez, eu seja resultado das minhas próprias experiências com o mundo e que, na verdade, o que me torna específico, ao contrário do que pensava, era justamente ser um produto único dos fenômenos coletivos que passei ao longo da minha vida. Ninguém é igual, mas sempre, no outro, conseguimos encontrar características que podem nos aproximar. Achei pouco criativo. Irritante. Desnecessário. O que achei que poderia ser uma evolução, se mostrou sendo uma verdadeira perda de tempo.Continuo arrogante; mesquinho, fechado em minhas próprias concepções. Será que, caso estudar, vou ficar assim? Apesar disso, tirei a conclusão de que a potência desse enunciado na minha experiência pessoal está mais atrelada ao que posso tirar deste contato que o que foi propriamente dito. Ser eu não deve ser anular a presença do outro; muito menos me tornar o que o outro deseja, mas, entendendo a minha posição passiva em relação ao mundo, formular as minhas próprias ideias em um grande movimento onde nada se cria, tudo se aprende, copia e aprimora.

Antes do quarto inundar, ninguém me ofereceu a medicação: talvez tenha me acostumado com a minha própria tristeza. O espaço vazio é ocupado pelo normativo vigente, e, disso, vamos para um ciclo indeterminado de tristezas e auto-afirmações do que sou, do que não devo ser e do que o mundo, ao amanhecer, continuará sendo. Se daqui eu venho, quero viver ao máximo as tristezas, adversidades e das, agora entendo, não-contrárias, alegrias e sucessos. Aprender comigo mesmo e, se me faz bem, também conviver com o outro. Ao fim do dia, toda aquela inundação pareceu mais uma mudança conturbada que uma tempestade caótica.  Aquelas fotos antigas que capturavam um mundo estático no passado já não parecem importar mais;muito menos as ilusões das novas fotos. Enquanto ao quarto? Diferentemente de mim, parece um caso perdido. Diferentemente de mim, apesar de todas as controvérsias, não parece florescer. Certas coisas podem ser mudadas: eu não quero viver acorrentado a um lugar que me faz sofrer; já o que não pode, acho que vou aprender a lidar. Sou tudo, mas, em uma das grandes primeiras vezes da vida, com o impossível se tornando o improvável, pretendo ser, de passo em passo, um pouco melhor para mim mesmo.

Publicado originalmente em 16/06/2024

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