Mitsuki Miyawaki, mais conhecida como Mitski, é uma cantora e compositora nipo-americana. Desde a graduação em composição musical pela SUNY Purchase, de Nova Iorque, produziu sete álbuns, fez participações em filmes e foi indicada ao Oscar de Melhor Canção Original, em 2023.

Mitski cativou o público jovem a partir de composições recheadas de afeto e crítica. Seus primeiros amores, ultrapassando conforto, discussões, unilateralidade e alcançando términos dolorosos; a ausência de pertencimento – ambientes hostis a grupos específicos da sociedade, falta de acolhimento -, permeada pelas violências sofridas no seu processo de imigração; como a sexualidade das mulheres é pouco respeitada dentro dos relacionamentos, seus desejos são reprimidos para atender a uma estrutura patriarcal. A cantora trafega abertamente por temas diversos na nossa sociedade, de modo que suas músicas encontram-se na vida de quem a escuta.
Bury Me At Makeout Creek é o terceiro álbum de estúdio da cantora. O nome foi inspirado em uma frase do personagem Milhouse de “Os Simpsons”, depois de ser atingido por um caminhão. Por conta do carinho nutrido por cada música do álbum, exponho, hoje, uma pequena parcela de toda a minha jornada com ele, como cada verso se metamorfoseou dentro de mim ao longo do tempo.
Texas Reznikoff
Gosto bastante das primeiras músicas. Assim como existem hiatos entre os lançamentos, existem lacunas entre as suas identidades. Entre o que ela já foi e o que ela ainda pretende ser. O produto da negação de si mesmo, produzindo um eu-segundo habitante do mesmo corpo. Nessa luta sem sujeito, nessa profunda rejeição, nos colocamos em relacionamentos danosos ao nosso bem-estar.
O estado do Texas, majoritariamente Republicano¹, serve como um gancho para o eu-lírico clamar por representatividade no relacionamento. Mitski já se posicionou contra o presidente Donald Trump², principal voz do Partido, por entender a potencialidade da sua voz na vida das pessoas. Todos podem se expressar confortavelmente nos shows dela. Este cerceamento da individualidade condiciona-nos a uma padronização: a um certo-errado, onde os nossos corpos, os nossos desejos precisam passar, antes, por uma aprovação da sociedade. Deixamos de nos entender, de abraçar as nossas emoções, visando a uma “tradicionalidade” que todos fingem seguir; em que todos fingem estar bem.
O amor próprio, aqui, é substituído por este “outro”. Ser meio é ser nada. O desejo do outro, muitas vezes colocado em cima dos nossos próprios e como isto machuca. Ao fim, aquele dilema mortal: esperar mudança e permanecer em situações humilhantes, ou abandonar essa situação e buscar reconstruir os cacos em si mesmo? O próprio álbum responde.
Carry Me Out
I untie my hair
And watch from my plastic chair*
*lembrando das infinitas noites em que navegava sentado numa cadeira amarela de bar
A sutileza detalha o sofrimento do eu-lírico. Passa por um luto, ainda em negação pela “passagem” de uma pessoa íntima. Quando Mitski menciona a “Estige”, refere-se ao rio que delimita o submundo, na Mitologia Grega³. Por meio da Estige, uma conexão se estabeleceria entre os dois personagens, mas toda a onda de melancolia da música sugere um insucesso. Lidar com a perda é reconhecer também o valor de nossas memórias. Que consigamos ter forças para nos abraçarmos, cuidarmos de nós e percebermos que as pessoas se vão, mas se estendem pelos nossos corpos. Cuide de si, de quem sempre cuidou das outras pessoas.
Francis Forever
Francis Forever é daquelas músicas folclóricas para todos os fãs da Mitski. Interpretada pela personagem Marceline no desenho animado Hora de Aventura⁴, ocupa a quinta posição das suas mais populares.
A ambientação cotidiana sugerida aqui é logo quebrada; o que se apresenta é justamente o contrário: buscar se acostumar com uma vida não-usual, onde aquela pessoa não faz mais parte. É desenhar em uma folha que foi furada; é tentar ignorar o elefante no meio da sala: como seguir com esse profundo vazio?
On sunny days I go out walking
I end up on a tree-lined street
I look up at the gaps of sunlight
I miss you more than anything
Em cada esquina, rua, praça; angústia, remorso, prazer, generosidade; conquista, fracasso, falta algo. Falta ela. Sempre me agradou muito esta estrofe, pois enxergamos o esforço da personagem em não se destruir, em entender que a única opção é seguir em frente, mas, ainda assim: não dá pra seguir sem enfrentar os problemas passados.
First Love / Late Spring
O nosso amor se tornou escasso e você parece ter percebido isso, mas ainda continua tentando, tentando e tentando consertar o que não tem mais jeito. Vivemos em um teatro. Você finge que ainda gosta de mim e eu finjo que tudo era como no início. Mas a paixão acabou e o que restou foi essa fantasia tóxica, onde as palavras perderam o sentido e agora só conseguem me sufocar. E eu me sinto uma idiota por ter me aproximado de você. Penso em te perder e meu coração se quebra em pedaços; eu não sei o que vai ser da minha vida sem você. Mesmo assim, preciso cuidar de mim. Pensar nisso como uma utopia só vai piorar tudo: preciso me abraçar de sentimentos positivos, de pessoas positivas. Então, vá embora! Preciso de distância; só o afastamento vai conseguir me confortar.
É compreensível Francis Forever e First Love/Late Spring estarem justapostas.

Jobless Monday
Sobre sobreviver enquanto artista, muitas vezes ganhando apenas o mínimo para sobreviver. A Indústria aniquila traços crescentes de criatividade, submete os artistas a destinarem parte significativa de seus ganhos para eles, explora os seus limites físicos a partir de padrões. A partir disto, como não se comparar com uma “coisa” que, quando escassa de disposição para continuar sendo esta máquina imparável, não serve de mais nada?
A atmosfera cotidiana da música sugere uma dependência financeira do eu-lírico com seu par. Estando desempregada, a única maneira de absorver novas experiências seria quando estivessem juntos. Estabelece-se, então, uma hierarquia onde um dos lados pode decidir o que quiser, pode amar quando quiser, pois sabe da situação do outro. É uma relação pautada em uma estrutura patriarcal. A independência financeira na vida da mulher e como isso pode tirá-la de relacionamentos abusivos e outras situações tóxicas.
I Don’t Smoke
I don’t smoke
Except for when I’m missing you
Os dois versos iniciais são suficientes para compreender o tema da música. Além disso, abre um questionamento: eu comecei a te amar porque me odiava ou eu comecei a me odiar ao te amar?
Este, aquele outro. Tão perto e tão distante. Esta figura que machuca tanto, mas é tão amável, pode ser qualquer uma. A personagem dedica a própria personalidade e valores para conquistar um mínimo de afeto, pouquíssimo retribuído, quebrando o seu próprio bem-estar em pedaços e “tentando recolher todos eles”⁵ quando não é possível fazer mais nada. E talvez seja até melhor que não.
Cultivar espaços onde temos nossa identidade respeitada. Passear conosco por onde ainda machuca. Cuidar da própria saúde. Fazer novas escolhas, frequentar novos espaços, conhecer novas pessoas. Fazer terapia muitas das vezes é comer no restaurante que gostamos, usar aquela roupa confortável para caminhar, refrescar o corpo, a mente, o espírito! São inúmeras as possibilidades do mundo. I Don’t Smoke expõe uma personagem que ainda não entende tudo isso. Cada um tem seu tempo, mas isso não significa que se deve ignorar qualquer ajuda. Admita quando estiver mal, plante a muda do amor e depois abrace os frutos da sutileza. Não transforme o seu próprio mundo em uma guerra, escute-se, admita o que sente para si. Admita o que sente para o outro. Cada um com seu tempo – com seu agora, com o seu presente.
Drunk Walk Home
Ser desprezada depois de horas de preparação, de entusiasmo, de tentar fazer esta noite ser a melhor de todas. Mas, acima de tudo, ser desprezada por quem deu um voto de confiança, por quem ama e não esperava nada disso. Atirada às ruas, neste clima de melancolia e saciedade que só a noite proporciona, entrega-se aos seus próprios sentimentos a fim de que a engulam, de que acabem com tudo isso. A derrota, a pequenez é tão aguda que se entrega a um grito louco, irracional, que é proporcional à sua dor. Assim como em I Don’t Smoke, essa relação de passado e presente; aceitação e frustração existe por ainda reverberar nas decisões atuais dela. Assim como “consultas de rotina”, precisamos acessar a nossa mente de forma constante para que tudo não desande. Às vezes, é só um momento ruim. Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.
Townie
A nova onda da juventude está completamente bêbada pelo prazer. Embreagar-se é requisito para acessar os espaços festivos. A bebida esconde os valores das pessoas ali dançando; esconde as individualidades de todos aqueles corpos, atirados ao mundo; os limites estabelecidos, o único objetivo é pensar em continuar, ou melhor, não pensar. Townie lembra Terra em Transe (1967), dirigido por Glauber Rocha. Este palco onde a extrema-direita já tomou o poder, onde as promessas que eles fizeram não encontram respaldo na realidade, onde todos estamos ficando doentes e encontrando conforto em vícios vazios. Tal qual no filme, existe essa desistência. O eu-lírico discrimina em que o círculo social dela é tão apegado. São alcoólatras, fumantes ultrapassando os seus desejos pelo próprio prazer. Ela aceita por necessitar dessas pessoas. Só quando prioriza os próprios desejos que quebra este ciclo de auto-destruição:
I don’t wanna be what my daddy wants me to be
I wanna be what my body wants me to be
Um manifesto por algo que carregamos e somos ao mesmo tempo: o nosso corpo. É a manifestação tangível e espontânea do que sentimos, das nossas insatisfações, dores. Escutar o meu corpo costuma dar certo quando sinto algo errado.
Last Words of a Shooting Star
Quando cuidamos da nossa saúde mental, é comum pessoas próximas oferecerem apoio e isso é ótimo. É uma demonstração de que somos importantes para elas. Ao mesmo tempo, precisamos de tempo e espaço para que novas percepções floresçam e entendamos os motivos das nossas frustrações. Manifesta-se o desejo de viver a própria vida, sem se incomodar com um outro que, tentando ajudar, torna-se invasivo. Se o objetivo dele é acalentar o próprio coração, livrá-lo de preocupações, então que o faça.
You wouldn’t leave ‘til we loved in the morning
You’d learned from movies how love ought to be
And you’d say you love me and look in my eyes
But I know through mine you were looking in yours
Sempre foi egoísta. A minha saúde, a minha vida não pertence a você. Vou deixar tudo consertado, não quero te causar problemas, você esteve comigo nos piores momentos. Mas eu preciso consertar meus pedaços sozinha e você está atrapalhando tudo isso. Estar ao teu controle é uma forma de te sentires menos solitário, mas tudo isto virou um grande teatro. Não posso mais fazer parte desta farsa. E nessas crises, premeditadas a chegar, atirarei-me de cabeça. A gente tropeça, rola até o fundo, mas o pôr do sol surge do horizonte todos os dias. Que nunca nos esqueçamos do quão lindo é viver!
Conclusão
Expôr a fragilidade das relações humanas, usar da sexualidade como ferramenta para a satisfação, não ter seus desejos correspondidos pelo outro e, sobretudo, aprofundar-se em si mesmo e conseguir enfim se amar: em Bury Me At Makeout Creek (2014), tudo é extremamente latente. Este álbum é uma viagem do desprezo ao amor próprio, sobre como um depende do outro. Quanta gentileza falta quando me olho no espelho, quando finjo que o meu corpo é um conjunto de unidades e posso ignorar algumas partes? Quantas pessoas já magoei por ser arrogante; impaciente com a pessoa mais especial em todos os momentos: eu mesmo? Claro, ainda se precisa mudar, ainda é pouco e os nossos espectros pretéritos permanecerão nos amaldiçoando. Todavia, é possível se orgulhar das minhas vitórias, é possível viver uma vida de maior tranquilidade, é possível se sentir respeitado sem ter de abdicar de si. Sempre estes temas voltarão, ora como agulhas, ora como penas, mas estar um pouquinho mais satisfeito, a cada dia que se passa, faz tudo valer à pena.
Este texto é uma retribuição a todo o trabalho da Mitski ao longo dos anos e como me inspirou a ser um artista melhor. A todos os sons, animações, histórias, vídeos e poesias surgidos a partir da Mitski, por pessoas cuja intimidade com a cantora possibilitou a criação de diversas novas histórias. As mídias transformadas pela inserção de uma música; a música transformada por estar dentro de uma mídia. Este gosto pela deformação, pela distorção, só foi possível pelo carinho enorme com este magnífico trabalho.

Referências
- RICE, S. Texas is entering third decade of republican control. Disponível em: <https://texasscorecard.com/state/texas-is-entering-third-decade-of-republican-control/>. Acesso em: 29 nov. 2024.
- BRILL, K. Mitski offers guest list spots at her shows to POC and LGBTQ people looking for a safe space post-trump win. Disponível em: <https://www.vulture.com/2016/11/mitski-works-to-make-shows-poc-lgbtq-safe-space.html>. Acesso em: 01 dez. 2024.
- STYX. Disponível em: <https://www.theoi.com/Khthonios/PotamosStyx.html>. Acesso em: 03. 2024.
- Francis Forever. Disponível em: <https://adventuretime.fandom.com/wiki/Francis_Forever>. Acesso em: 03 dez. 2024.
- MITSKI. Humpty (official video). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=dJ9O_2l5ln0>. Acesso em: 12 dez. 2024.